Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
Heartbreakers – “Born to Lose”
Ele só pode ter achado aquilo tudo muito curioso. Ele, Johnny Thunders, ele, o americano nascido em Queens, puto conhecedor das ruas, tipo habituado à selva urbana de gangues a grafitar paredes de gangues rivais, a espancar aqui e ali, a serem gloriosos rebeldes sem causa, negociantes pouco gloriosos de substâncias ilícitas ou ambas as coisas. Johnny Thunders, que andara a inspirar e a chocar em igual medida enquanto membro dos proto-punks New York Dolls, bomba rock’n’roll de ambiguidade sexual bem explícita, terá achado um piadão do caraças à ruidosa polémica em desenvolvimento quando aterra em Londres, em Dezembro de 1976.
Os Sex Pistols acabavam de se tornar, definitivamente, alvos a abater pela parte da nação ferozmente defensora da boa educação burguesa e do respeitinho pelas instituições. Tudo acontecera em directo na TV, o que tornava o caso mais escandaloso. Convidados para o programa de Bill Grundy, famosa figura televisiva à época, os Pistols e seus acompanhantes, onde se encontrava, por exemplo, Siouxsie Sioux, acabam o programa a praguejar em vernáculo muito redondo e a chamar “velho depravado” ao apresentador, depois de este, certamente senhor de boa educação e respeito pela moral e pelas instituições, ter entrado em diálogo sexista com Siouxsie.
“O escândalo que para aqui vai”, terá pensado, entre gargalhadas, Johnny Thunders – porque aquilo, perante o que ele sabia, perante o que vivia, e como vivia, era uma brincadeira de miúdos.
Modelado no marginal rebelde original, Keith Richards – a irmã penteava-o de acordo com o ídolo, nos anos 1960 -, estivera no festival de Altamont, nos Estados Unidos, quando um homem foi assassinado pelos Hell’s Angels enquanto os Stones tocavam em palco. Estivera no Isle of Wight, em Inglaterra, que passou de festival de paz e amor a violenta revolta contracultural com público a destruir vedações, a atacar e a ser atacado pela polícia, com fogueiras a irromperem, diabólicas, no frio da noite enquanto os Doors ou Leonard Cohen davam música às gentes. Ele sabia, portanto, a fragilidade das utopias pintadas a cores garridas. Ele sabia que era sempre a perder e que, se é sempre a perder, o melhor é viver a correr, totalmente e sem freios, para que, quando a derrota inevitável chegar, a recebamos com um dedo espetado e um sorriso sardónico a iluminar o rosto.
Johnny Thunders chegara a Londres com os seus Heartbreakers para integrar uma digressão hoje mítica. Thunders, o baterista Jerry Nolan, outro ex-New York Dolls, Billy Rath e o guitarrista Walter Lure, acompanhariam os Sex Pistols na sua “Anarchy Tour”. Além das duas bandas, participariam na digressão os Clash e os Damned, substituídos entretanto pelos Buzzcocks. Verdadeira realeza punk, portanto. Mas os Heartbreakers distinguiam-se. Eram americanos habituadas às ruas perigosas de Nova Iorque, eram americanos de vida excessiva bem vivida – e os ingleses, naturalmente, ergueram-nos a ícones de toda a cena. Finda a digressão, não voltaram a casa.
Em Inglaterra ficaram, em Inglaterra gravaram o álbum “L.A.M.F.”, ou seja “Like a motherfucker”. Eram banda de rock’n’roll com acordes atirados à jugular, com batida certeira e voz feita urgência irreprimível. Viviam nas canções como viviam a vida fora dela, sem horários e sem controle, com drogarias a rodos e a confirmção do que já sabiam muito antes de os Sex Pistols gritarem palavra de ordem emblemática – “no future”, claro está. “L.A.M.F.” chegou em 1977, ano punk. Abria com a canção que é hino onde tudo se resume, que é vitória e gargalhada e cuspidela perante o inevitável. “Born to lose, baby I’m born to lose”. Gritemos e cantemos e repitamos vezes sem conta. “Born to lose”. Já ganhámos.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso