Ao longo do ano, a Antena 3 vai revisitar o punk, canção por canção. Revisitar não só o punk, que eclodiu em Inglaterra há quatro décadas, mas também descobrir, lá atrás no tempo, aqueles que o prenunciaram quando punk não era ainda género musical e, um pouco depois desse tempo, aqueles que dele frutificaram.
The Slits — “Newtown (Peel Sessions)”
Aquela capa era escandalosa, era provocadora, era um atentado à moral e aos bons costumes. Era, em resumo, uma vergonha. Era uma vergonha, explique-se, que três mulheres se pussessem naqueles preparos na capa de um disco rock. O pior de tudo é que o que incomodava mais não era a nudez, era o facto de aquela nudez não ser sexy e não titilar a líbido reprimida dos conservadores sempre dados à indignação. Naquela capa, a de Cut, o primeiro álbum das Slits, editado em 1979, Ari Up, Viv Albertine e Tessa Pollitt surgiam semi nuas, cobertas de lama, a lançar-nos um olhar confiante e altivo. Não eram três mulheres a usar da sua sensualidade para encher o olho de quem as olhava, eram três mulheres a mostrarem que faziam exactamente o que queriam, como queriam – e se tivéssemos algum problema com isso, pois bem, o problema era nosso.
Essa atitude feminista, ferozmente independente, é uma das marcas da banda nascida em Londres e uma das razões pelas quais se destacaram na cena punk com Londres como epicentro. Porque é realmente de atitude que falamos: em 1977 integraram a White Riot Tour que reuniu os Clash, os Buzzcocks, os Subway Sect e os The Prefects e adivinhem quem foram as maiores espalha-brasas que escaparam por pouco de ser expulsas da digressão? Exactamente. Eram as Slits, não eram nenhuns meninos.
Quando Cut, o álbum de estreia foi editado, as Slits já tinham feito grande parte do seu caminho. O punk, pela sua natureza tendencialmente democrática e teoricamente alheia a discriminação de género, mostrara-lhes que podiam ser mais que fãs de música, presença assídua nos concertos e compradoras compulsivas de discos. Mostrou-lhes que podiam meter-se no estúdio, depois atirar-se para o palco e, entre um e outro, descobrirem um som que não existia antes e dizerem o que mais ninguém podia dizer.
Cristalizadas numa formação clássica que, além da vocalista Ari Up, da guitarrista Viv Albertine e da baixista Tessa Pollitt, incluía a baterista Palmolive — mais tarde mudar-se-ia para as Raincoats —, as Slits satirizavam a posição social da mulher enquanto ser prendado e do lar – não, não estavam condenadas a ser “Typical girls” — e cantavam as virtudes inocentes de roubos em lojas — “Shoplifting”, diz o título — enquanto assinavam uma versão para a história de “I heard it through the Gravepine”, de Marvin Gaye. Eram arrojadas nas melodias e na interpretação, eram donas de guitarras rasgadas e batidas secas e inesperadas. Eram o pós-punk a chegar, pela inventividade, e eram, pela ferocidade e urgência, o punk que acontecia agora mesmo.
“In the beggining, there was rhythm”, cantavam elas nesse Cut produzido por um cavalheiro do reggae, Dennis Bovell — e notava-se que, para elas, esse era mesmo o princípio de tudo. Porém, antes de Cut, o ritmo das Slits era outro. Elas andaram nos sítios todos onde o punk acontecia: no 100 Club, no Roxy, em amizades com os Pistols, em digressões com Clash e nas páginas dos jornais, que demasiadas vezes as tratavam com irritante condescendência — elas queriam ser uma banda, simplesmente uma banda, mas nunca conseguiam ser mais que “a” banda de raparigas do punk.
Felizmente, podia-se ouvi-las. E, assim sendo, ouviu-as John Peel, que lhes dedicou algumas das suas Peel Sessions. A primeira, em 1977, foi a primeira apresentação das Slits ao vasto mundo exterior. Eram banda crua, toda ela vontade e urgência. Banda que tinha coisas para dizer e sabia exactamente como o conseguir. Tudo a snifar televisão, a caldar-se com futebol, a encandear-se com os flashes nas capas dos tablóides. Tudo a adormecer enquanto o mundo se revolvia com estrondo. Era isso que as Slits nos diziam em “Newtown”, uma das canções das miticas sessões para Peel gravadas e emitidas em Setembro de 1977. Eram as Slits a chegar para nos acordar.
Ficha Técnica:
Texto – Mário Lopes
Voz – Daniel Belo
Sonoplastia – Luís Franjoso